terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Ao rio

Rio de Janeiro
Puta cidade
Não vou falar
Cá me encontro eu
De queixos pendengos, olhar mareado
e embriagado de te fitar
E me assola um pôr-do-sol
rubro, sangrento, indolor

Não vou falar
Não vou falar
que és inebriante
Não vou falar
que és dia noite a dentro
Não vou falar nem cortar os pulsos
A prantear meus amores por ti

Não vou, não quero
É o que todos dizem
da beleza estonteante
atmosfera cativante
Vou parecer repetição sem mistério
Não quero

Mas pudera
Tão lindamente lúgubre
Boêmia, indecorosa esplanada
Fosse feia
Ninguém falava nada

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Cinismo Público

Eu fico aqui sentado olhando o sol
Fico sentado pensando se num é farol
Aconchegado filosofando sobre o tudo
O cinismo duns bicudo
A bobeira duns menino
Que vê coisa e fica mudo

A terra ta pra se acabar
Tem gente sonsa querendo morar na lua
Vamos pra rua, vamos pra rua
Vai sobrar ou não
O asteca disse que o céu vai virar mar do sertão

Tem que ter trabalho?
Passarinho só sabe voar
Nego passa da fome
A fome canta como sabiá

O sol há de brilhar mais uma vez
Panos brancos na mente
Na base do talvez

A terra ta pra se acabar
Tanta macumba, é tanto povo na rua
Vamos pra rua, vamos pra rua
Quanta ilusão
O asteca disse que o céu vai virar mar do sertão

Tem nego no poder
O pacificador maluco
O sangue do menino não dá luto
Sal do mar Yemanjá não vai beber

E é o que é pra fazer?
Cuidar dos filhos, melhor não entender
Eu to ca fula
To fulo pra gritar com o povo
Eu to esperando o cara vir de novo
Vamos pra rua, vamos pra rua
Esperar sentado não
O asteca disse que o céu vai virar mar do sertão

luz do sol

Deita luz, gloriosamente
Faz brotar da paz nascente
Doente, diz a terra vem ter em mim

Deita luz, seu sangue em mim
Consola luz, meu corpo luz
E ao fim, esconde a sorte do meu povo
da sombra, anda luz
do estorvo, andaluz
em mim

Teu colo quente
meu corpo sente
embriagado, olho de frente
teus vastos olhos azuis
Posso pegar? Posso pegar pra mim?

Deita luz, mesmo que furtivamente
Molha meus lábios, louca indescente
E torna a deitar seu corpo sobre mim

A vibração do teu feixe desleixada
Faz zumbir minha pele ressecada
Faz chorar um rio em teu louvor

Resplandesce, ó luz
Deita luz em mim

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Malandro

Diluído em meio à pequena multidão que desce eufórica a Rua do Riachuelo, anda ele. Sóbrio, passo após o outro, em meio àqueles foliões. O ano é 1945 e neste bairro seu terno branco, camisa vermelha e chapéu de panamá denunciam a periculosidade deste homem, meio vilão meio herói, que transita imponente entre todo tipo de gente. Ao longe, quem lhe vê toma por alguém que dança, com seu passo esguio e ritmado. Sereno e pronto para atacar.
Nesse dia derramou-se do Morro da Mangueira animado. Vestiu seu cachecol branco, a navalha e baralho no bolso e um gole de cachaça antes de sair. Mais acessível do que o de praxe, foi-se do morro lentamente, tal como fosse seu verdadeiro dono. Cumprimentando a todos, aliciando até às moças casadas.
Há certas pessoas que não falam com homens como ele. Acham perigoso, arredio. Destes, só hoje ele fez troça, fingiu estar nervoso. Deixou-os apavorados e os abandonou gargalhando sua gargalhada mais aberta e potente. Era, por sinal, sua marca. Diziam por aí que quem a ouvisse ao longe – seu regozijo exultante em sarcasmo – haveria de sair num pinote, pois era o anúncio da sua chegada. Zé da Mangueira, o malandro mais perigoso da área, vinha aí pronto para matar. Que se divertia com tal conduta e por isso se ria na gargalhada mais formosa e diabólica que já se ouviu. Mas ele mesmo não sentia tal fúria nem gosto pela morte. Fazia o que tinha que fazer. Malandro tem que se virar e não pode dar mole. Tratava-se de um malandro direito, correto. Não matava por dinheiro e só roubava otário. Malandro bom, malandro brabo.
As luzes de postes mal tratados e quebradiços revelam pouco e não dão nomes. Numa sexta-feira de carnaval, a luz amarelada produz mais sombras do que clarividência. E neste cenário escurecido pela luz, um malandro é a sombra. Pequena silhueta branca preenchida por um conteúdo negro e embaçado, tão quieto e imóvel ao andar, traçando entre tantas outras silhuetas uma linha sinuosa, e só reconhecido por quem escolher. Mão direita sempre pronta a sacar da navalha.
Pontuando este universo colorido e lúgubre a rua umedecida por uma poção nada insípida constituída pelos mais variados líquidos, de urina a aguardente, culminando num odor inconfundível do carnaval. Limitando e guiando sua passagem, sombras e manchas disformes e desfocadas organizadas de tal maneira a insinuar sobrados e edificações sempre mórbidas, mas convidativas. Botecos, charutarias e cabarés dão personalidades às sombras. E de suas abertas janelas, moças de fino-mal-trato cantam e chamam, tal como sereias por seus vitimados piratas das ensopadas ruas da lapa, para desfruta-las em seu alçapão de júbilo e prazer. O ar umedecido e pestilento sugere um visual de fog britânico, muito embora com odor de docas baianas. Por entre fumaças e cheiros, as serpentinas lembram um cenário de guerra, cortando o ar heterogêneo e traçando linhas retas que subitamente curvam em declive ao chão chocando a algo sem nome do qual se levantam confetes suados, girando em seu próprio eixo, e tramitando um contorno na libidinagem atmosférica do ambiente. Explosões de paixão, euforia e lascívia são o cenário de um carnaval, visualmente representadas por confetes e serpentinas.
Neste santuário da luxúria segue o malandro. Em sua estrada não haveria destino, não há objetivo, só há a oportunidade. O que se apresenta se coloca como foco provisório de sua atenção, pequena pausa que antecede outra caminhada. Embriagado pelo orvalho entorpecedor das ruas, vendo tantas cabrochas e não querendo nenhuma, percebe em si uma estranheza. Uma sóbria certeza de um fim incerto. Passeia ligeiramente os dedos na navalha em busca de conforto.
Um grito toma seu espaço. A atenção desviada se incomoda e torna curiosa para uma esquina preciosamente mal iluminada. Pensa, – outra donzela com acidentes de trabalho – Outra oportunidade para ter de graça o que só se tem pagando.
Sente-se turvo. Antes de virar a esquina prostra, mal tragado. Não consegue coibir a sensação de que seguir vai significar mais que o nome da ação sugere, vai desviar seu rumo sem rumo.
Por não conter-se, atravessa esse portal extraviado em esquina e depara-se com uma cena lôbrega, frugal. Dois homens domados por uma mulher que lhes tange com movimentos secos e rápidos. Nunca havia visto uma mulher bater tão severamente em dois homens com tanta frieza, precisão. E que mulher! Estava para surgir força tamanha para desafiar tal cristalização de poema. A beleza pontiaguda de uma dama voraz e valente – sem borrar a maquiagem.
Ela, sem pestanejar se guia em sua direção. Sua expressão poderia se traduzir em frangos sangrando, mas para seus olhos entorpecidos, um malandro agora bêbado de paixão, se lia apenas borboletas.
A mulher pisa o chão firme, ele relaxa os músculos, sorri. Ela tira qualquer objeto luminoso da cintura, ele tira suavemente seu lenço branco do pescoço. As luzes do poste piscam em desvario. A lua grita sua luz ao solo onde sangue fora derramado. Um gosto sego na boca. Uma tonteira repentina. Com o rosto sexualmente próximo do seu, ela termina de remover o punhal de sua barriga. Se dor tivesse voz estaria aos berros. Se ele tivesse força recitaria uma poesia.
Ela pisa voluptuosa, uma perna de cada vez em direção à madrugada perdida. Sem abrevio. Sem medo algum. Ele, mal segurando o próprio corpo ereto, só quer segui-la, amá-la, ao menos ouvir sua voz.
Traído pela boemia que o criou. Ludibriado pela poesia que nunca antes lhe permeara o coração, mas tão somente as letras de seus sambas. Morre no carnaval... quem sabe de amor.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Que mais?

Que mais?

Que mais poderia ser tão estranho? Não saber o futuro; pra quê? Um homem se olha no espelho e reconhece tão logo a sua pessoa. Possui (ou acha que possui) um nome, que não é nem seu nem do outro, mas de tantos e pelo qual se reconhece, muito embora não o seja. Ao menos vira a cabeça quando lhe chamam, por esse nome. Vê uma imagem numa foto (tal qual a do espelho, porém tempos mais nova) e se sabe através dela; esse sou eu em Acapulco. Uns até tem seus próprios códigos: ouve um nome estranho, como amor, num certo timbre de uma certa voz e já sabe que se trata dele, ou dela, ou ele-ela dependendo do caso; Já presenciei um rapaz ao ser perguntado – quem é a pessoa mais boazinha do grupo – responder, esse sou eu – reconhecendo-se numa só qualidade.

No muito se sabe quem se é até o momento. Nunca que um homem saberá que será sua transformação daí a dez anos, e não saberá dizer que homem será ele então. (deviam dizer; até agora sou o fulano). O tal do futuro nos guarda a nós mesmo em segredo e se puder nunca nos dará nem uma pista misericordiosa. Caso saiba que realmente vá morrer e tenha fôlego ou serenidade para altos vôos de raciocínio, um homem em seu último suspiro pode olhar para traz e dizer; EU SOU ASSIM. Não antes, nem nunca se não nesta oportunidade. Tal reação química da mistura entre a mutabilidade do homem e a cegueira do futuro resulta num cu que nos caga ignorância dia a dia, noite a noite, felicidade a felicidade, certeza a certeza. Deixando-nos certos de que nada saberemos e que nunca em consciência poderíamos ser uma obra completa. Tão somente mortos. Aí sim.

Eu, que não cago ignorância, mas cago (afirmo isso tendo certeza do elevado grau de cultura das minhas fezes), sento-me no vaso e o faço. Levanto-me, passo pelo espelho e não sei quem vi. Até agora sou o Pedro, mas ainda não fomos apresentados. Tenho certeza de que sou esse cara porque está lá na carteira de identificação: Pedro Nicolau Tomé Simas – 12795325-5 IFP. Sei que sou eu, pelo simples fato de que acordo e durmo sob o mesmo ponto de vista e embora pouca, tenho memória da vida desse eu que eu sou, mas não sei quem sou eu. Tampouco sei quem sou até agora, pois até nisso me enrolo e perco. Indeciso, não me defino e nem conseguiria, pois não me reconheço a não ser pela imagem, que poderia muito bem ser uma copia de um outro eu que não conheço e que não seja eu, mas sim o eu de outro. A um tempo me disseram que um tal de Felipe era eu, ou eu era ele. Não souberam se decidir (tal como eu não me decido) quem é quem, ou se são ambos os dois. O importante é que eu não saiba nada da vida desse outro eu pra que não me confunda, mais. Já me basto com minha própria confusão que explode a cada segundo. Outra seria covardia, ou comigo, ou com ele. A quem, não importa. Sigo assim meu caminho com o único eu que desconheço até a sala onde me deparo com um livro do autor Campos de Carvalho (que não sou eu, mas a quem me sinto copiando enquanto escrevo, e não copio), jogo-o fora para não mais lembrar que não posso ser como ele, ou ao menos escrever como ele, a quem copio agora, mal e porcamente. Caguei pra tudo isso e fui pra rua.

Já um tanto inebriado de tanto pensar nas coisas que EU sei fazer, os trabalhos que EU ainda não tenho, no tanto de coisas que ninguém sabe que EU sei e se soubessem ME dariam mais oportunidade, cruzo com uma moça. Que porra é essa!! Parei simplesmente e curti o pasmo que era só meu (me foi nítido que ninguém mais percebeu o esplendor que era essa menina). Ao que recuperei o fôlego, já tinha sumido. Fiquei o resto do meu dia no mesmo lugar esperando que ela voltasse, e se voltasse não faria nada, apenas olhava de novo. Eu que sou eu mesmo faço isso frequentemente e nisso às vezes me reconheço (mas não sei que tipo de homem sou ao fazê-lo – romântico ou pervertido) e nas oportunidades que tive e quis tomar abordagem não me foi possível devido a minha própria falta de coragem. É muito triste um homem não ter oportunidade de se conhecer para saber seus limites e não tentar atropela-los, podendo maneja-los a mudar ou não. Não sei quem sou e tento amar a todas as mulheres que me encantam, sem saber que disso não sou capaz. Muito tristes são essas mulheres que passam olhando para si (sem saber quem são) e não vêem que estão sendo amadas, a cada esquina, por muitos e muitos EUs que se perdem em seus olhos e esquecem de si. Quando ama, um homem promove a oportunidade única de saber quem é. Se reconhece nos olhos de alguém que se sabe nos seus (quando cessam de amar, esquecem imediatamente quem são). Não me conheço, mas me reconheço a cada dia nos olhos das meninas que nem me vêem, e por isso não sabem quem eu sou, quem são e nem que me amam profundamente. Ter identidade é se apaixonar muito e sempre e tanto, seja você quem for. Esse sou eu.