terça-feira, 3 de novembro de 2009

Malandro

Diluído em meio à pequena multidão que desce eufórica a Rua do Riachuelo, anda ele. Sóbrio, passo após o outro, em meio àqueles foliões. O ano é 1945 e neste bairro seu terno branco, camisa vermelha e chapéu de panamá denunciam a periculosidade deste homem, meio vilão meio herói, que transita imponente entre todo tipo de gente. Ao longe, quem lhe vê toma por alguém que dança, com seu passo esguio e ritmado. Sereno e pronto para atacar.
Nesse dia derramou-se do Morro da Mangueira animado. Vestiu seu cachecol branco, a navalha e baralho no bolso e um gole de cachaça antes de sair. Mais acessível do que o de praxe, foi-se do morro lentamente, tal como fosse seu verdadeiro dono. Cumprimentando a todos, aliciando até às moças casadas.
Há certas pessoas que não falam com homens como ele. Acham perigoso, arredio. Destes, só hoje ele fez troça, fingiu estar nervoso. Deixou-os apavorados e os abandonou gargalhando sua gargalhada mais aberta e potente. Era, por sinal, sua marca. Diziam por aí que quem a ouvisse ao longe – seu regozijo exultante em sarcasmo – haveria de sair num pinote, pois era o anúncio da sua chegada. Zé da Mangueira, o malandro mais perigoso da área, vinha aí pronto para matar. Que se divertia com tal conduta e por isso se ria na gargalhada mais formosa e diabólica que já se ouviu. Mas ele mesmo não sentia tal fúria nem gosto pela morte. Fazia o que tinha que fazer. Malandro tem que se virar e não pode dar mole. Tratava-se de um malandro direito, correto. Não matava por dinheiro e só roubava otário. Malandro bom, malandro brabo.
As luzes de postes mal tratados e quebradiços revelam pouco e não dão nomes. Numa sexta-feira de carnaval, a luz amarelada produz mais sombras do que clarividência. E neste cenário escurecido pela luz, um malandro é a sombra. Pequena silhueta branca preenchida por um conteúdo negro e embaçado, tão quieto e imóvel ao andar, traçando entre tantas outras silhuetas uma linha sinuosa, e só reconhecido por quem escolher. Mão direita sempre pronta a sacar da navalha.
Pontuando este universo colorido e lúgubre a rua umedecida por uma poção nada insípida constituída pelos mais variados líquidos, de urina a aguardente, culminando num odor inconfundível do carnaval. Limitando e guiando sua passagem, sombras e manchas disformes e desfocadas organizadas de tal maneira a insinuar sobrados e edificações sempre mórbidas, mas convidativas. Botecos, charutarias e cabarés dão personalidades às sombras. E de suas abertas janelas, moças de fino-mal-trato cantam e chamam, tal como sereias por seus vitimados piratas das ensopadas ruas da lapa, para desfruta-las em seu alçapão de júbilo e prazer. O ar umedecido e pestilento sugere um visual de fog britânico, muito embora com odor de docas baianas. Por entre fumaças e cheiros, as serpentinas lembram um cenário de guerra, cortando o ar heterogêneo e traçando linhas retas que subitamente curvam em declive ao chão chocando a algo sem nome do qual se levantam confetes suados, girando em seu próprio eixo, e tramitando um contorno na libidinagem atmosférica do ambiente. Explosões de paixão, euforia e lascívia são o cenário de um carnaval, visualmente representadas por confetes e serpentinas.
Neste santuário da luxúria segue o malandro. Em sua estrada não haveria destino, não há objetivo, só há a oportunidade. O que se apresenta se coloca como foco provisório de sua atenção, pequena pausa que antecede outra caminhada. Embriagado pelo orvalho entorpecedor das ruas, vendo tantas cabrochas e não querendo nenhuma, percebe em si uma estranheza. Uma sóbria certeza de um fim incerto. Passeia ligeiramente os dedos na navalha em busca de conforto.
Um grito toma seu espaço. A atenção desviada se incomoda e torna curiosa para uma esquina preciosamente mal iluminada. Pensa, – outra donzela com acidentes de trabalho – Outra oportunidade para ter de graça o que só se tem pagando.
Sente-se turvo. Antes de virar a esquina prostra, mal tragado. Não consegue coibir a sensação de que seguir vai significar mais que o nome da ação sugere, vai desviar seu rumo sem rumo.
Por não conter-se, atravessa esse portal extraviado em esquina e depara-se com uma cena lôbrega, frugal. Dois homens domados por uma mulher que lhes tange com movimentos secos e rápidos. Nunca havia visto uma mulher bater tão severamente em dois homens com tanta frieza, precisão. E que mulher! Estava para surgir força tamanha para desafiar tal cristalização de poema. A beleza pontiaguda de uma dama voraz e valente – sem borrar a maquiagem.
Ela, sem pestanejar se guia em sua direção. Sua expressão poderia se traduzir em frangos sangrando, mas para seus olhos entorpecidos, um malandro agora bêbado de paixão, se lia apenas borboletas.
A mulher pisa o chão firme, ele relaxa os músculos, sorri. Ela tira qualquer objeto luminoso da cintura, ele tira suavemente seu lenço branco do pescoço. As luzes do poste piscam em desvario. A lua grita sua luz ao solo onde sangue fora derramado. Um gosto sego na boca. Uma tonteira repentina. Com o rosto sexualmente próximo do seu, ela termina de remover o punhal de sua barriga. Se dor tivesse voz estaria aos berros. Se ele tivesse força recitaria uma poesia.
Ela pisa voluptuosa, uma perna de cada vez em direção à madrugada perdida. Sem abrevio. Sem medo algum. Ele, mal segurando o próprio corpo ereto, só quer segui-la, amá-la, ao menos ouvir sua voz.
Traído pela boemia que o criou. Ludibriado pela poesia que nunca antes lhe permeara o coração, mas tão somente as letras de seus sambas. Morre no carnaval... quem sabe de amor.